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somos todos donas de casa

Sarah Baker entrou nas nossas vidas como ninguém. Era um fenómeno, em todos os aspectos, e tornou-se o centro de histórias tão boas que não havia como deixar de contá-las, a princípio por entusiasmo nosso, como quem convertesse descrentes, e depois, perdida a primeira compulsão de contar, a pedido, e ditas com a agilidade de peças já muito ensaiadas. As farsas e façanhas de Sarah Baker eram recurso infalível para preencher um silêncio, como quem enche um copo, e assim paga ao tempo a renda devida: esta meia hora será bem passada.

Assim é com certas histórias: tantas vezes se contam por serem verdade, por se crer que isso lhes confere um valor excepcional, que perdem qualquer ligação com a realidade. Cada encenação as remete mais para o mundo da fábula, cria signos e heróis, pede catarse e morais.

Assim, das histórias de Sarah Baker, pouco sobrou de Sarah Baker: posto isto, em vez de me aventurar a contá-las, limitar-me-ei a dizer porque pensei nela. Sarah passou presa cinquenta anos, em doze, senão treze, prisões. Depois de sair, quando a conheci, contava-me coisas do que era a vida na prisão, e do vendaval constante daquelas histórias tresloucadas ficava-me às vezes alguma partícula singular, dura como um grão de areia: o cigarro a cinco libras. O amigo que desaparece, e o que se tem de fazer para descobrir porquê. A sandes de frango sem frango. A sombra constante de um poder vingativo, arbitrário, imprevisível.

Desde o princípio do confinamento que falamos muito da ideia da prisão. Dizemos que as nossas casas, as nossas vidas, se tornaram prisões. Dizemos que é pela relação alterada que levamos com o tempo — que deixou de existir — que somos prisioneiros, privados daquilo de que sempre supusemos dispor.

Mas a comparação com a prisão é uma fatalidade metafórica, um curto-circuito da língua, por assim dizer. Quando se fala de limitação da liberdade, fala-se de prisão, mas não da prisão de facto, da cela partilhada, da cantina onde não se escolhe o que se come, dos duches comuns, do chá que se fuma polvilhado com pastilha de nicotina, do tempo de recreio cronometrado e sujeito a cancelamento, da autoridade da força, do cassetete e da insígnia, que exigem a sujeição abjecta, a cedência do corpo.

A ideia, sim, da prisão enquanto realidade psíquica, do confinamento a reduzir o alcance do espírito, leva-nos a questionar as bases sobre as quais ainda assentam as nossas noções inconscientes do que é a liberdade: a ideia de que a mente pode ser livre quando o corpo está preso entre quatro paredes, de que a dignidade do espírito se pode manter até em condições de abjecção. Mas apesar do interesse destas perguntas, não acredito que se possa ir longe no entendimento da nossa actual condição usando o paralelo do cárcere, onde os prisioneiros vivem sem telemóvel, sem internet, sem Zoom nem Netflix nem o passeio diário do cão, sem visita ao Intermarché nem à mercearia da esquina, e nem emails nem dias de trabalho mais ou menos conseguidos diante do computador, alternado com a música da aparelhagem e a televisão.

Quanto a mim, o que vivemos agora é a repetição — em farsa, como teria de ser — da vida da mulher (leia-se dona de casa) do século XX.

Isto ocorreu-me a propósito de uma crónica sobre a vida de Simone de Beauvoir que aparece no último número da London Review of Books. Nessa crónica, que varre em dez mil palavras a vida imparável de Beauvoir, o que me chamou a atenção foi uma frase fugidia, insignificante ao lado da exaltação das paixões, do escândalo dos trios amorosos, da vocação política messiânica: ‘The war years were the only time she entertained the idea of herself as a housewife: she records that she scraped the maggots off a joint of pork and made turnip sauerkraut.’ [‘A altura da guerra foi a única época em que alimentou uma concepção de si própria como dona de casa: escreve que limpou as larvas de uma peça de porco e fez choucroute de nabo’ ] Foi esta imagem de Simone a reinventar-se durante a crise, a refugiar-se temporariamente num papel que a outras era imposto, que me fez pensar nas vidas dessas outras, cujas biografias não estão escritas e dão romances e contos difíceis de querer ler (penso no ensaio de Ursula LeGuin que descreve as nossas preferências narrativas como funções de tipos de actividade associados com homens e com masculinidade).

Imaginemos a vida de M., que passou cinquenta anos de vida conjugal, se despediu do trabalho na altura de casar, ou de ter o primeiro filho, e depois nunca mais conseguiu voltar. O que será o dia a dia desta mulher? Acorda, faz café ao marido, tem depois umas cinco horas por sua conta. Levita entre o ócio e a tarefa imposta. Lava o chão, vai às compras, recebe um telefonema, combinada a hora certa para não o incomodar. Às quatro o rapaz chega a casa. Faz-lhe o lanche, com esmero, que é a maior felicidade que tem na vida, ver o filho crescer. Começa a fazer o jantar. Vai ficar bom, o jantar, nem que seja por despeito, já que é a única coisa que dá para mostrar o que vale. O marido chega. Ela continua de volta da tarte, da sopa, e da sobremesa, ele vê as notícias e depois o futebol. Enquanto alguma coisa fervilha, ou gratina, ela chega à soleira da porta da sala, e sem se sentar vê também cinco minutos do jogo, depois traz-lhe uma cerveja sem que seja preciso que ele peça, é como o mais avançado dos robôs da Amazon que sabe aquilo que queremos antes que tenhamos sequer de chegar a querê-lo.

Um dos mapas de Asger Jorn e Guy Debord mostra algo que parece, à primeira vista, um plano de Paris riscado por um grande asterisco preto, dentro do qual se distingue depois um triângulo sobre um eixo diagonal pesado. O mapa mostra as deslocações, ao longo de um ano, de uma jovem parisiense, e o triângulo liga o quarto, a universidade, e a aula de piano. Se esses trajetos já eram monótonos, os desta dona de casa contar-se-iam em metros, de casa ao supermercado e vice-versa.

Tal como nós, a dona de casa não estaria totalmente resignada. Queixava-se a quem a ouvisse. Mas o que havia de fazer? Sem trabalho, sem dinheiro para além do que lhe era dado para compras e jantar na mesa, vai fazendo o que há para fazer: passa décadas a melhorar molhos, a amassar farinha, a estender massa.

Ninguém lhe diria que não fosse fazer compras ao Chiado, ou visitar a irmã que morava na outra margem. Ninguém teria que lhe dizer, pois sem dinheiro e sem carro, é evidente que não pode ser.

O que lhe faltava era uma conta no Instagram, em que se pudesse gabar da tarte de bacalhau, da bola de presunto bem dourada. Com isso, não se teria sentido nem insignificante nem isolada, mas heroína quotidiana de um friso de cores sóbrias sobre interiores equilibrados. Um mundo em que os conflitos se esbatem em tons pastel, e a Hidra amansa ao ver o rolo da massa.

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